Não pretendemos chorar sobre o leite derramado. As inteligências artificiais (IA) chegaram para valer e já fazem parte do dia a dia dos departamentos de comunicação. Não adianta nos apegar ao saudosismo para tentar resistir à mudança que já foi operada em vidas pessoais e profissionais. Da análise de imagens médicas à manipulação de imagens para divertir os amigos, as aplicações são variadas e sequer ousamos elencá-las nesse texto.
Aqui, vamos concentrar nossas discussões sobre os efeitos das IA na criação publicitária, em especial na redação/produção de conteúdos. Para iniciarmos essa reflexão, vamos retomar alguns conceitos centrais da redação publicitária, a partir de autores que são referências na formação acadêmica.
Celso Figueiredo (2014, p. 02), na apresentação do livro Redação Publicitária: sedução pela palavra, compara o labor dos redatores ao ato de “montar um Lego com as pecinhas das palavras e, com esse fabuloso castelo de conceitos, seduzir o leitor. Para tanto, vamos usar a razão, a emoção e o senso de oportunidade”.
João Anzanello Carrascoza, em Do Caos à criação publicitária (2008, p. 23), é ainda mais enfático sobre o ingrediente humano no processo de concepção de uma ideia. “… é vital que tenham (os criativos) um vasto background cultural e estejam empenhados constantemente na ampliação desse background, buscando no próprio estoque de signos de sua comunidade a matéria-prima para chegar à solução mais adequada ao problema de comunicação do anunciante.”
Em comum nas duas citações, notamos a valorização da inventividade e sensibilidade, além da experiência humana compartilhada, como elementos que fornecem originalidade aos materiais publicitários.
Ok, mas e com as IA, como é que fica esse processo? Retomando o primeiro parágrafo: a IA estão disseminadas e não há mais como ignorar suas contribuições no campo publicitário. Dentre elas estão a elaboração de nuvens de palavras, a realização de uma revisão gramatical e até mesmo promover uma checagem, de maneira superficial, sobre o que já foi publicado sobre dado tema.
Esses recursos são fabulosos e podem potencializar o trabalho criativo. Ponto final. O alerta que trazemos é sobre o uso acrítico das IA, que, em vez de amplificar as ideias, acabam por despersonalizar a jornada de criação. E o pior: os sistemas inteligentes substituem o processo autoral por opção do próprio ser humano.
Compreendemos que prazos apertados e condições laborais pouco favoráveis podem estimular a formulação de prompts na linha: “chat, crie para mim vários títulos para uma empresa de joias”, ou então: “ei, me apresente 10 legendas que mostrem que a beterraba é o alimento mais saudável”. O perigo é quando as soluções vomitadas pelos sistemas são empregadas na linha do “control c + control v”. Ao recortar as soluções sem filtro avaliativo, deixamos de ser ‘artesãos da palavra’, como nomeou o autor Zeca Martins, e nos tornamos meros fazedores de prompts. Que fique registrado: também entendemos que a elaboração de prompts pode ser uma ação estratégica e, exagerando um pouco, até criativa, mas compará-la ao ofício de quem é responsável pela redação original, marcante e autêntica nos parece algo muito distante.
Novamente, não propomos um resgate da publicidade Old School. A IA pode ser boa parceira, contanto que o processo criativo, a sensibilidade e a curadoria daquilo que é sugerido nos brainstoms continuem sob comando humano. A curto prazo, corre-se o risco de encontrarmos soluções (nada) criativas de baixa complexidade que serão utilizadas indiscriminadamente para várias marcas simultaneamente – afinal os sistemas de IA mais utilizados atualmente (aqueles chamados de IA generativa) tendem a repetir o passado. Mais do que isso: tendem a repetir o passado estatisticamente mais saliente, ou seja, menos original – um nome mais apropriado, portanto, seria “IA recombinativa”. A médio e a longo prazos, visualizamos uma crise autoral (e até existencial) no segmento, em que os criadores além de experimentarem uma deterioração das suas capacidades criativas serão questionados se as ideias foram genuinamente geradas por eles.
Os fins não podem justificar os meios nesse tema. A concepção minuciosa de produção de conteúdos textuais precisa ser valorizada, a começar pelo próprio profissional, que necessita investir em leitura, cursos, aperfeiçoamentos e consumo de bens culturais. O uso da IA indiscriminado colabora para desvalorizar a criatividade de nossa atividade, além de contribuir para a precarização das nossas condições profissionais. A produtividade não pode ser a palavra-chave em uma área que se notabilizou pela sensibilidade. Retomamos: os fins não podem justificar os meios.
Por isso, precisamos examinar com cautela sobre a aplicação dessas ferramentas inteligentes no dia a dia dos profissionais de criação publicitária. A criatividade e a autoria sempre foram marcas inequívocas do campo de atuação. A publicidade é uma atividade que se alimenta dos seus festivais e premiações que transformaram profissionais como Washington Olivetto em figuras públicas reconhecidas nacionalmente. Propagandas originais e marcantes se tornaram parte da cultura popular e se tornaram assunto em conversas de família e de amigos.
A IA pode ser utilizada de maneira inteligente para amplificar nossas ideias. Na verdade, é isso que propomos: que pensemos nesses sistemas mais como sistemas de AI (Amplificação da Inteligência) do que como sistemas de IA (ou seja, tipos de “inteligências”). Delegar a inventividade e a construção da nossa criação cultural compartilhada para um sistema artificial nos coloca em risco de nos apagarmos como criativos, além da possibilidade de sermos comoditizados e, portanto, intercambiáveis por qualquer um capaz de operar os mesmos prompts. Portanto, cabe refletirmos se é isso mesmo que queremos, como redatores: perder nossa assinatura autoral?